quase utopia grécia perene
Quase ilha, Peloponeso foi uma terra grande numa terra ainda maior chamada Grécia.
Quiseram os deuses e os elementos que este grande torrão não se soltasse da sua mãe e não se entregasse a um dos mares vizinhos em perdida paixão. Era o tempo original das cítaras, corpos em amor e luta pelas veredas e bosques. Sacrificiais promessas de estio, olímpicas e terrenas cumplicidades, gerando homens novos, iguais e sem medo.
Arcádia nascia neste berço de montanhas ensolaradas, entre os altos contrafortes do norte e a brisa terna do sul, adoçando-se junto ao mar quente da ilha grande. Lugar de prados e bosques de carvalhos, escorriam pelo seu corpo suaves rios, de Cilene, melros brancos no seu ar. Das terras altas vinha a lã e o mel, os homens e seus rebanhos, desenrolando os caminhos até à cidade maior. Inundavam-se as ágoras de sementes, tomilho e murta, absinto e adivinhadores de longe. À entrada da praça dos mercadores, o bronze e o ébano esculpiam a memória dos dias da matança. Os pássaros, em voo incessante e absoluto, teciam durante o dia o véu que abrigaria de noite a cidade.
Longe, nos montes mais secos colhiam-se azeitonas, todos os anos no mês das tempestades e da festa que amainava Zeus. Lá em baixo, onde acabava a rocha e começava a inveja, homens robustos e crentes embarcavam no medo trazendo conchas, perfumes e óleos; trazendo do mar os novos contornos da Terra. Era a vida quase simples e doce, não fossem os cíclicos rigores divinos e o desconcerto dos homens poderosos.
Mil luas, marés e maremotos, guerras, vulcões e toda a espécie de sinais aconteceram. No ruído e no fumo levaram para longe o cheiro e as cores deste lugar. O tempo apagou os verdes tufos dos pinhais de Tegea, as colinas floridas de Ártemis, o ranger salgado dos navios, o orvalho perfumado de Delfos.
Toda Arcádia restou uma quieta semente. Essenciais e contidas, todas as montanhas, falésias e grutas, lendas e gravuras, numa semente redonda como a lua. Pequena como o agora. Toda a força da natureza nos confins de um grão, até um dia. Um dia a semente germinou na memória do poeta, um dia deu rebentos. Depois os rebentos cresceram e de um caule vigoroso saíram mil folhas, cadernos e livros; muitos livros. Arcádia está lá, dentro de cada um, entre as folhas alvas, por entre cada letra; jasmim trepado verso a verso, perfumando cada sílaba.
Arcádia é a terra secreta de quem tem um sonho. É o lugar onde nasce, cada manhã, a flor perene da utopia.
Fernando Gaspar
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Dimitsana
Filha de Ábaris e de uma brisa marítima, Dimitsana nasceu fria e perfumada. Trazia a vontade de amar em cada braço, em cada mão. Fez-se montanha, árvore de fruta doce. Dela saíram rebanhos e águas frescas em cada manhã daquele tempo. Cantou os homens da cidade de baixo, os que iam para o mar buscar memórias da Terra.
Iraia
Lívida como a primeira manhã, sua pele. Gesto meigo, levou nele o mundo, as tempestades e incertezas. Quis, de sua mãe-rainha, a força, de seu pai o olhar que o vento leva para longe. Um dia fechou a grande porta dos dias, cercou-se de pedras talhadas e rumores. Subiu as paredes grossas até ao voo do último pássaro, pousou a mão no regaço e partiu para dentro de si mesma.
Tegea
Quinta filha de um rei sem nome, veio do mar no colo de Arces, deusa das marés. A sua beleza soltou guerras nas montanhas, semeou tréguas nos vales. As gentes das aldeias do norte celebraram durante doze noites cantando quando Tegea, por fim, se enamorou. Colheram-se as flores das arribas, o mel dos bosques mais altos, a espuma fresca do mar. Com tudo se fez a cama onde nasceu o novo rei, seu filho.
Mantineia
Da ilha grande veio a brisa e o pólen. Passou rasando os prados, roçando as ovelhas e o arvoredo das orlas. O verão não tinha começado ainda quando, da rainha Asea, saiu frágil e húmida a princesa Mantineia. A primeira das terras verdes em tantos anos, tantas luas, tantas vidas. Os homens tinham partido para o sul, para lá ainda das areias quentes. Uns de barco, outros sem destino. Os velhos contavam os dias alisando o linho e as sementes.
Valtetsi
Era bela desde sempre. Havia já longos anos que as cascatas deixaram de murmurar as entranhas da terra parindo rios. Os pássaros tinham esquecido as árvores e os insetos. Só em passagem ao largo, deixavam no céu as marcas e os cantos. Um dia, o ar ficou espesso e dele se fizeram gotas e delas se fizeram chuva, gritos e rezas. Tremeu a luz e a terra em verdes novos. Nua, Valtetsi recebeu a dádiva e as flores abriram outra vez.
Liodora
Os pastores vieram até às portas da cidade dourada, trouxeram a lã e o pão. Havia no ar cheiro a alfazema e absinto, esperança e entusiasmo. Das janelas saíam antigos bordados em golfadas de cor e fina habilidade. No chão, verde cama de fetos e rebentos como se as calcárias lages se transmutassem, crianças e os cães rodopiavam, pássaros em saltos histéricos. Liodora nascia nesse dia.
Dara
o sol sacudiu o resto da noite nos pátios, devolveu a alvura aos campanários, levantou a névoa no vale. Os rebanhos desceram e subiram pelos trilhos de sempre, lentamente. Dizia-se que viria do mar o rei. Depois de tanto tempo traria o sossego e novas do outro lado. Esperaram-se longos anos até aquele pequeno dia, pequeno e igual na imensidão do desamparo. Por fim arrancaria de si a tristeza e abrindo todas as janelas, Dara, sua filha, derramaria sobre a praça a calidez do seu olhar, o contentamento que tinha dentro.
Lyssarea
Os cavalos ouviam-se já ao longe, as trombetas e as lanças nos escudos. Todo o metal feroz, o fel da história, a rigidez dos ossos, marcavam o compasso nos corações ansiosos. Desta vez Lyssarea levaria a paz prometida ao seu povo. Seria pelas sua mãos, nas suas mãos, deixada a crescer naquele campo escolhido desde sempre para a morte. Lá chegados pousaram tudo, tudo lá deixaram. Soltaram os cavalos, o ferro e as cicatrizes, sangue e gritos de mãe. De lá vieram só com os dias que nasceriam. Naquele campo não mais cresceu a discórdia nem o barulho da guerra se ouviu.
Nea
Chegaram da terra do poente os barcos, o ouro e as ervas. Grupos de mulheres escorriam pelas quelhas da muralha antiga até às areias quentes do mar. Corrida em alarido pela marola adentro até ao aperto dos corações, salpicos e resgate dos marinheiros heróis. Fez-se dia pela noite em toda a costa até às falésias. Da pele lisa do mar, Tarsis trouxe para Nea o brilho do céu e sobre o seu peito lho pousou delicado.
Kalliane
No tempo das flores lilases, correu Kalliane até ao cimo da montanha grande. De lá viu o outro lado do mar, bosques de loureiros recortando as pastagens, os caminhos. Silêncio e calma. Quis que a vida fosse aquele dia, que o tempo nada lhe levasse, nada lhe trouxesse. quis guardar para si aquele vento quente. Vento que docemente soprava semeando pássaros pelo vale.
Fernando Gaspar